No tempo em que o Espírito habitava a terra
E em que os homens
sentiam na carne a beleza da arte
Eu ainda não tinha
aparecido.
Naquele tempo as
pombas brincavam com as crianças
E os homens morriam
na guerra cobertos de sangue.
Naquele tempo as
mulheres davam de dia o trabalho da palha e da lã
E davam de noite, ao
homem cansado, a volúpia amorosa do corpo.
Eu ainda não tinha
aparecido.
No tempo que vinham
mudando os seres e as coisas
Chegavam também os
primeiros gritos da vinda do homem novo
Que vinha trazer à
carne um novo sentido de prazer
E vinha expulsar o
Espírito dos seres e das coisas.
Eu já tinha
aparecido.
No caos, no horror,
no parado, eu vi o caminho que ninguém via
O caminho que só o
homem de Deus pressente na treva.
Eu quis fugir da
perdição dos outros caminhos
Mas eu caí.
Eu não tinha como o
homem de outrora a força da luta
Eu não matei quando
devia matar
Eu cedi ao prazer e à
luxúria da carne do mundo.
Eu vi que o caminho
se ia afastando da minha vista
Se ia sumindo,
ficando indeciso, desaparecendo.
Quis andar para a
frente.
Mas o corpo cansado
tombou ao beijo da última mulher que ficara.
Mas não.
Eu sei que a Verdade
ainda habita minha alma
E a alma que é da
Verdade é como a raiz que é da terra.
O caminho fugiu dos
olhos do meu corpo
Mas não desapareceu
dos olhos do meu espírito
Meu espírito sabe...
Ele sabe que longe da
carne e do amor do mundo
Fica a longa vereda
dos destinados do profeta.
Eu tenho esperanças,
Senhor.
Na verdade o que
subsiste é o forte que luta
O fraco que foge é a
lama que corre do monte para o vale.
A águia dos
precipícios não é do beiral das casas
Ela voa na tempestade
e repousa na bonança.
Eu tenho esperanças,
Senhor.
Tenho esperanças no
meu espírito extraordinário
E tenho esperança na
minha alma extraordinária.
O filho dos homens
antigos
Cujo cadáver não era
possuído da terra
Há de um dia ver o
caminho de luz que existe na treva
E então, Senhor
Ele há de caminhar de
braços abertos, de olhos abertos
Para o profeta que a
sua alma ama mas que seu espírito ainda não possuiu.
[Vinicius de Morais]
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