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quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Uma porta, uma mulher e uma fonte



Uma porta, uma mulher e uma fonte

[Quadro que se encontra na sala no
 Albergue São João da Cruz dos Caminhos 
do pintor José Marques]

Uma fonte brotando do chão refresca, canta e lava; e uma porta se entreabre. Nunca se fecha. E a fonte nunca se acaba. E se houver uma mulher, que seja hebreia e me sorria junto à porta. A água vai soleira fora, a porta está à entrada e não vejo que haja outra, nem é mister que haja. Por ela entram o herói e o arauto, o monge, o santo, o rei, o meirinho e o menino, o que semeia e o que colhe. A luz, o lodo e o sujo, o leão e o cordeiro, a cobra, o vitelo e o burro.
De que me serve toda a luz do sol e rústicos caminhos abertos pradaria fora se não houver uma fonte que me refresque, me sacie a sede e me baile os ouvidos? De que me servem as montanhas se por entre os segredos das rochas não cantam fontes, não correm ribeiros limpos em que me banhe, onde lave o pó da história que se foi acumulando nas estantes e na armadura?
Quero uma fonte e um regato manso onde lave as feridas abertas pelo rascanhar das silvas e dos tojos, onde verta o pus pútrido que me incha. Quero um regato como um bálsamo que me unja o corpo dorido dos combates e maltratado por nevoeiros de incompreensões.
Mas não quero ficar fechado em casa. Sim, não me prendam em casa por que ousarei voar. Não tenho medo de voar, não tenho medo de ir pois sei que hei-de voltar. Encontrarei algures no meio do mar uma rocha, um poiso, um crâneo onde repousar. Sim, deixem a porta entreaberta para se na volta regressar desvalido não me custar a entrar. Lá dentro não preciso nem de lâmpada nem de cama, mas de espaço onde repouse a cabeça junto do altar de Deus. Eu fico ali, porque sei que Ele está lá. A sua presença luminosa é como uma sombra, uma nuvem, que não me incendeia os olhos, e me conforta. Que possa ficar até partir de novo, até que as paredes de novo se enfunem ao vento e a barca rompa amarras e se faça de novo ao mar. Não interessa que seja de pedra, que eu não tenho medo que se afunde. Preciso é de um mar que me desafie a navegar sem descanso.
Existem muitos lugares, frequentei muitos portos. Enfrentei tempestades e soçobrei na acalmia. E ainda não durmo o fundo do mar. Já fiquei sem mastro e remendei o velame. Mas agora, agora mesmo, do que eu mais tenho saudade é de ali ficar, junto daquele altar que me cheira a pão fresco. É esse cheiro e essa sombra luminosa que ali me atraem e por isso entrarei porta adentro.
Tenha a casa uma mulher. Discreta, sorrindo, nobre de traços, ainda que serviçal de avental. Uma mulher hebreia que respeite o mar mas não o tema. Guarde a porta sem medo, uma mulher que ame a porta e quem por ela entre. Uma mulher cujas mãos são mansas e sem brusquidão, que não impedem quem sai, mesmo que saiam todos! Uma mulher sem medo de servir, sem medo de ficar só, sem medo da espera, sem medo dos que querem entrar a cavalo, protegidos por armaduras, espadas e lanças. Uma mulher que ama a casa e lhe põe flores silvestres. Uma mulher descalça mas não mendiga. Descalça por que a sua casa lhe é confortável e é mais sua quantos mais entrarem. Descalça porque disponível para receber, impreparada para partir. Não irá jamais combater batalhas, governar reinos ou vencer as olímpiadas.
Se houver um copo naquela casa ele está à mão, porque não se nega água a quem passa ou a quem entra, que, juntos, jamais beberão toda aquela eterna fonte que mana e corre mansa porta fora como um rio de águas salubres que fecundará a cidade.
À porta há uma mulher e uma fonte.
Tudo tão feminino e fecundo, que para duro e anguloso é bastante o que resta ausente.
Vinde, peregrinos, não interessa o caminho que levais, mas a sede que trazeis.

[Frei João Costa]

1 comentário:

  1. Foi uma honra muito grande para mim, Frei João, ter colaborado com essa obra para o Ano da Fé,
    Obrigado pelo privilégio que me deram

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