Uma porta, uma
mulher e uma fonte
[Quadro que se encontra na sala no
Albergue São João da Cruz dos Caminhos
do pintor José Marques]
Albergue São João da Cruz dos Caminhos
do pintor José Marques]
Uma fonte brotando do chão refresca,
canta e lava; e uma porta se entreabre. Nunca se fecha. E a fonte nunca se
acaba. E se houver uma mulher, que seja hebreia e me sorria junto à porta. A água vai
soleira fora, a porta está
à entrada e não vejo que
haja outra, nem é mister que haja. Por ela entram o herói e o arauto,
o monge, o santo, o rei, o meirinho e o menino, o que semeia e o que colhe. A
luz, o lodo e o sujo, o leão
e o cordeiro, a cobra, o vitelo e o burro.
De que me serve toda a luz do sol e rústicos
caminhos abertos pradaria fora se não houver uma fonte que me refresque,
me sacie a sede e me baile os ouvidos? De que me servem as montanhas se por
entre os segredos das rochas não
cantam fontes, não correm
ribeiros limpos em que me banhe, onde lave o pó da história que se
foi acumulando nas estantes e na armadura?
Quero uma fonte e um regato manso
onde lave as feridas abertas pelo rascanhar das silvas e dos tojos, onde verta o
pus pútrido que me
incha. Quero um regato como um bálsamo que me unja o corpo dorido dos
combates e maltratado por nevoeiros de incompreensões.
Mas não quero ficar
fechado em casa. Sim, não
me prendam em casa por que ousarei voar. Não tenho medo de voar, não tenho medo
de ir pois sei que hei-de voltar. Encontrarei algures no meio do mar uma rocha,
um poiso, um crâneo onde repousar. Sim, deixem a porta entreaberta para se na
volta regressar desvalido não
me custar a entrar. Lá
dentro não preciso nem
de lâmpada nem de cama, mas de espaço onde repouse a cabeça junto do altar de
Deus. Eu fico ali, porque sei que Ele está lá. A sua presença luminosa é como uma
sombra, uma nuvem, que não
me incendeia os olhos, e me conforta. Que possa ficar até partir de novo, até
que as paredes de novo se enfunem ao vento e a barca rompa amarras e se faça de
novo ao mar. Não interessa
que seja de pedra, que eu não
tenho medo que se afunde. Preciso é de um mar que me desafie a navegar sem
descanso.
Existem muitos lugares, frequentei
muitos portos. Enfrentei tempestades e soçobrei na acalmia. E ainda não durmo o
fundo do mar. Já fiquei sem
mastro e remendei o velame. Mas agora, agora mesmo, do que eu mais tenho
saudade é de ali ficar, junto daquele altar que me cheira a pão fresco. É esse cheiro
e essa sombra luminosa que ali me atraem e por isso entrarei porta adentro.
Tenha a casa uma mulher. Discreta, sorrindo,
nobre de traços, ainda que serviçal de avental. Uma mulher hebreia que respeite
o mar mas não o tema.
Guarde a porta sem medo, uma mulher que ame a porta e quem por ela entre. Uma
mulher cujas mãos são mansas e
sem brusquidão, que não impedem quem
sai, mesmo que saiam todos! Uma mulher sem medo de servir, sem medo de ficar só, sem medo da
espera, sem medo dos que querem entrar a cavalo, protegidos por armaduras, espadas
e lanças. Uma mulher que ama a casa e lhe põe flores silvestres. Uma mulher
descalça mas não mendiga.
Descalça por que a sua casa lhe é confortável e é mais sua quantos mais
entrarem. Descalça porque disponível para receber, impreparada para
partir. Não irá jamais combater
batalhas, governar reinos ou vencer as olímpiadas.
Se houver um copo naquela casa ele
está à mão, porque não se nega água a quem
passa ou a quem entra, que, juntos, jamais beberão
toda aquela eterna fonte que mana e corre mansa porta fora como um rio de águas salubres
que fecundará a cidade.
À porta há uma mulher e
uma fonte.
Tudo tão feminino e
fecundo, que para duro e anguloso é bastante o que resta ausente.
Vinde, peregrinos, não interessa o
caminho que levais, mas a sede que trazeis.
[Frei João Costa]
Foi uma honra muito grande para mim, Frei João, ter colaborado com essa obra para o Ano da Fé,
ResponderEliminarObrigado pelo privilégio que me deram