QUE FORÇA É ESSA AMIGO ?
Que força é essa amigo,
que te põe de bem com os outros e contigo? Sábado de manhã, batem
as 8h00 na Igreja do Carmo abafando, por momentos, o chilrear das
aves. Aos poucos, pequenos magotes de pessoas aproximam-se da igreja,
compondo um grupo de cerca de meia centena de corajosos. Alguém nos
recorda que lá do outro lado do globo, perto dos nossos antípodas,
há quem precise da nossa solidariedade. O que move gente de uma
pequena cidade a ser fraterna com um longínquo país? Que força é
essa amigo, que te põe de bem com os outros e contigo? Partimos. O
grupo vai-se esticando qual corda que se desenrola. Fintámos Santa
Luzia pelo lado das Urselinas. A conversa vai sendo posta em dia com
os companheiros da jornada. Alguns olhares pelo canto da vista trazem
imagens de belas moradias fazendo jus à conceituada arquitetura
portuguesa. A temperatura sobe, notam-se as primeiras manchas de suor
nas t-shirts à minha frente. Alguém assume a liderança e fala de
uma cruz preta e, aí está ela! Tento situar o meu pensamento há
dois, ou três séculos atrás. No imaginário aparecem peregrinos
carregados de superstições e medos. Como deveria ser difícil fazer
o caminho naquelas épocas. E, eis que de novo sou assolado pelo
mesmo pensamento: Que força é essa amigo, que te põe de bem com os
outros e contigo? Caminhámos, à direita a encosta verdejante, à
esquerda, ao fundo, o azul cintilante do mar, à frente a água
cristalina do rio que vai polindo o duro granito. Beleza natural. Ao
lado, a Quinta da Boa Viagem, um hino aos solares minhotos. Salta-me
à ideia aquela frase bonita que, por vezes, ouço na missa: …
fizeste para nós este mundo grande e belo! Sobre a rocha consolámos
o estômago e retemperámos forças. O grupo une-se e aí vamos nós.
O espetáculo aprimora-se, lindo! Penso nos peregrinos deste caminho,
sobretudo os estrangeiros, como descreverão estas paisagens a
familiares e amigos? Ah, o cartão das máquinas fotográficas fica
sem memória nesta zona! O mercúrio sobe nos termómetros, a
dificuldade do percurso aperta um pouco. Nem uma queixa, nem uma
lamúria, nada! Olho à minha volta, volto a olhar e capto
serenidade, paz, sorrisos da alma. E … Que força é essa amigo,
que te põe de bem com os outros e contigo? O caminho desafia. Piso
irregular, ramos atravessados, mato e a voz de comando ordena que se
aguarda. É preciso unir o grupo. Noto, pela primeira vez, cansaço
num petiz. Ouço algures: - força, falta pouco! Começámos a
descer. Os santos vão ajudando. Um cachorro manifesta,
acerrimamente, o seu descontentamento pela invasão. Nada que vozes
meigas das crianças não resolvam. O alcatrão, horror dos
peregrinos, aparece. O estio aperta e a água das garrafas sumiu. O
ritmo assemelha-se ao cantar do coral das idosas da minha freguesia.
Campos e casa visitam-nos. O grupo esfrangalha-se. Avistam-se
prédios, vamos caminhando e parece que os vou repelindo, mas não,
afinal é uma sensação similar à do poeta que encontrei pelo
caminho: «O rio … embora desça a serra parece que vai subindo».
Vila Praia de Âncora, 14h00, entra-me nos olhos. Alma cheia, coração
feliz e, de repente, passa o filme, desde o início, na pantalha do
meu pensamento, legendado: Que força é essa amigo, que te põe de
bem com os outros e contigo?
[Guaskari Martins]
Sem comentários:
Enviar um comentário