Na noite de 31 de Dezembro
Tristão acorda em sobressalto. Sonhava com um carrossel de cores quando um
estrondo lhe atravessou a cabeça fazendo-o erguer da cama grande.
Tudo naquele quarto lhe parece
grande e estrangeiro, paredes, portas, armários, mas o que sente não é
exactamente medo. Mais uma saudade das cores do sonho. Ali, agora, tudo escuro
e enevoado, como nos sonhos falsos dos filmes. Ele vira-se, desce da cama. Um
miúdo de três anos e meio com uma cara clara e grandes, espantosos, olhos
pretos.
No corredor, quadros com imagens
de caça. Tristão pensa como são feios os rostos sem sobrancelhas dos
cavaleiros. Para não ver mais nenhum, olha para baixo enquanto anda. Os pés
descalços na madeira fria. Quando encontra uma porta, empurra-a.
A meio da sala, dá conta de ir a
chorar baixinho. Esperava encontrar alguém depois da porta, mas não há ninguém.
Nem a mãe, nem o pai. E, à medida que vai avançando para a outra porta,
adensa-se o medo estremunhado no coração do miúdo. Por um lado, o choro ecoando
naquele espaço. Por outro, o terror das coisas, tão quietas e imprecisas. A
cadeira fora do lugar, o cinzeiro sujo. Tristão sente que, agora acordado, está
dentro de um lugar muito mais vago e nevoento do que antes, quando sonhava. Um
lugar vago e escuro e nevoento que é tal e qual um pesadelo.
Outra porta: luz, música. Homens
com laços debaixo do queixo, mulheres com pescoços nus. Mostram-se espantados e
alegres ao verem-no, mas são maus actores. E a luz é violenta, e alguém dá uma
gargalhada grossa, e há o estrondo de bombas lá fora. Tristão não chora mais.
Está em pânico, olhos perdidos. Vai atirar-se para o chão e enrolar-se sobre si
próprio, fechado a qualquer palavra ou gesto, repetindo para dentro "não,
não".
Mas o mordomo da empresa de
organização de eventos vale o seu peso em ouro. Pousa a garrafa de champanhe,
pega no miúdo. Sorri aos convidados e sai com ele para a janela, para ver o
fogo-de-artifício. "Estás a ver? É isto o barulho", diz-lhe.
E Tristão serena porque pensa que
aquelas cores explodindo na noite são tão parecidas com as do sonho, tão
parecidas, que afinal talvez seja aquilo a "realidade".
[Jacinto Lucas Pires]
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