Um caminho, dois albergues, muitos amigos
Um
albergue é uma responsabilidade. Digo, ter a chave que abre por dentro o
albergue de peregrinos é uma grande responsabilidade. Ainda assim atirei-me à
ideia e eis que o Albergue de peregrinos de São João da Cruz dos Caminhos,
aqui, em Viana do
Castelo, está de pé e de pé se mantém servindo delicadamente
os peregrinos que aqui chegam buscando repouso, silêncio, descanso.
Nem todos
o encontram, mas faremos tudo para que sim.
Abriu a
14 de Dezembro de 2010, dia do Patrono. Abriu como as sementes pequeninas que
se semeiam na terra. E, de facto, foi assim que entreguei a chave aos primeiros
hospitaleiros. A chave estava semeada, o albergue podia abrir.
Depois de
aberto foi um gozo receber peregrinos. E um gozo maior ainda foi ver que foram
aparecendo hospitaleiros, na verdade, hospitaleiras, que tendo feito o caminho
de Santiago agora dão tempo para abrir os braços e o coração aos que chegam
cansados. (É outra maneira de fazer o caminho. É um caminho interior de serviço).
O nosso
albergue não é perfeito, mas é o orgulho das hospitaleiras, meu e do Santo.
Entretanto
– enquanto se lavam janelas ou se espera por um peregrino – fomos
perguntando-nos: «E porque não vamos para o caminho, de albergue em albergue,
ver e sentir o percursos que os peregrinos hão-de fazer? Assim até os poderemos
ajudar melhor, informar melhor…». Assim foi, escolheu-se o dia, botou-se para o
facebook e ficámos à espera de um dia bom.
O dia
chegou de encomenda: que belo dia! Chovera durante quase toda a semana e voltou
a chover impiedosamente nos dias seguintes. Foi no dia 20 de Outubro, sábado.
Um dia quente, luminoso, cheio de sol, de natureza, de cores outonais, setas
amarelas, cheiros frescos, flores frescas, que também as há no Outono!, castanhas
no chão, calçadas.
Às oito e
meia em ponto daquela manhã fria começámos a caminhada. No albergue quase
ninguém entrou porque não queríamos entrar, queríamos caminhar! Cada um levava
o pin do albergue bem à vista. Éramos
16 caminheiros, dois homens e 14 mulheres! E está tudo dito.
Junto à
Igreja do Carmo derivamos em direcção ao rio, buscando a primeira seta amarela:
foi uma festa. Depois percorremos a cidade fria e deserta. Que me recorde
passamos pela Sé, pela rua e pela capela de São Tiago. Subimos ao Bairro das
Ursulinas e tchás, tiramos a primeira foto em conjunto. Continuamos a subir,
apanhámos a cota certa e aí vamos nós até Carreço. Duvidei que lá chegássemos,
mas chegámos e até chegámos mais longe. Como vamos ver. Aqui ficam as minhas
impressões.
1. Cada vez me convenço mais: se
queremos alguma coisa com alma, um projecto que chegue ao destino deve
entregar-se a uma mulher. Se ela não for capaz arranjará quem seja. Na
caminhada nós tínhamos 14, cinco comprometidas com a hospitalidade do
albergue. Sobre a hospitalidade estamos bem falados, sobre a coesão do
grupo, sobre o levar a coisa até ao fim está visto: chegámos e a cantar!
2. As hospitaleiras
prometeram-nos um máximo de 25km de caminho. Mas ao que parece percorremos
37 quilómetros!
GPS dixit! Não sei como, mas
chegámos todos. Ao fim de 25
km regressaram a casa quatro caminheiras, mas
tinham que fazer noite, e a troika
não está para brincadeiras! E já muito bondosas foram elas em nos
acompanhar durante tanto tempo! Aqui há gente de coragem.
3. As setas amarelas são um
vício. Segui-las, buscá-las é um jogo. Nem sempre vão pelo mais óbvio. Não
nos levam pelas vias mais rápidas onde se poderiam cumprir os simples
25km, não. As setas amarelas levam-nos ao encontro do musgo, das pedras
velhas, dos cruzeiros, igrejas e monumentos, ao encontro das calçadas
antigas, dos ribeiros cantantes, dos velhos caminhos de carros de bois, do
silêncio do vento por entre pinhais. Depois levam-nos ao centro dos
pequenos burgos, sem outra pretensão maior que a de ir beber um bica, se
for o caso. Enfim, que as setas amarelas são um vício vê-se bem pela cara
com que se fica quando por alguma razão deixamos de as ver.
4. Caminhar devagar, saborear o
tempo, sentir o relógio é uma boa onda. Ninguém corre, ninguém força a
corrida. Há tempo para tudo, sobretudo para perder. É uma bela ideia
perder tempo no caminho. Sinceramente, gostei muito de ter perdido aquele
dia. Há medida que o tempo corria eu corria para longe do écran do
computador e irmanava-me com os montes e as ribeiras, os pássaros e os
campos, o verde e os tons castanhos e vermelhos. Que bela fusão! Que bela
ousadia a de perder tempo ao menos por um dia!
5. Alguém me alertou ao início
que «o caminho é um confessionário!». Levei a coisa para o sério, a sério.
Embora tenha pensado que era por eu ser padre. Não era. Concluí que
andamos todos tão isolados que é bom ter quem nos ouça em pequenas e
grandes (nas grandes também!) confidências. Concordo: o caminho é um bom
confessionário. Não tenho dúvidas. É bom que haja alguém que nos ouça ao
longo do caminho. Também por isso gostei de caminhada de albergue em
albergue.
6. É boa ideia levar uma pequena
máquina fotográfica. Agora há telemóveis que fazem a tarefa, mas eu
aconselho a levar uma com alguma qualidade. Não dá para fotografar tudo,
pois existem imensos motivos, imensas surpresas, desde as gentes à
natureza, dos animais e aos edifícios. De Viana a Caminha existem coisas
interessantíssimas para ver e fotografar. Quem gosta de guardar ou
construir um álbum faz bem em atirar os pés ao caminho por ali. Não
desvendo segredos, digo só que fazem bem em ir e fotografar.
7. O caminho que passa por Viana
tem um nome: chama-se Caminho da Costa. Claro que nos atira para o monte,
mas trepámos pouco, subimos pouco. Tirando as Ursulinas só depois em Afife
é que os montes nos tiram os bofes cá para fora. Mas é pouco, quase nada.
De resto, enquanto torneamos a montanha, enquanto delicadamente vamos
percorrendo os segredos do seu corpo, o mar mantém-se presente. O mar
verde e azul mantém-se ali vivo, forte, calmo, cheiroso. Caminhamos pelo
monte e o mar caminha connosco. Vem beijar a terra e fica longe de nós,
mas vai e vem como que ousando seguir-nos, acompanhar-nos, escutar-nos. Há
nele uma energia que nos chega e chegando impede-nos de desistirmos. Há
ali um não sei quê com o mar, que nos atira para frente…
8. Fiquei sensibilizado com o
pormenor de trilharmos a rota dos monumentos locais. É uma marca
distintiva do caminho de Santiago. Vamos para lá, mas não vamos só para
comungar a natureza, o sol e a penedia. Vamos comungar também os
monumentos, as igrejas, a arquitectura. Tudo espanta o peregrino de
Santiago, e isto também. Gostei desse pormenor mesmo quando ele me fez
caminhar mais quilómetros e contribuiu para o aumento das minhas bolhas.
Se é verdade que nem só de pão vive o homem, então demos-lhe caminhos para
percorrer, sol para beber, ribeiro com quem possa cantar, céu onde possa
voar, monumentos que possa apreciar, escadas onde descansar.
9. Duas coisas neste particular
me surpreenderam: os cruzeiros e os nichos. Eu sabia que os cruzeiros do
Minho são famosos e sempre que posso páro neles e até rezo. E admiro-os.
São testemunho da fé cristã. São sobretudo um testemunho público duma fé
comunitária. Eu gosto dos cruzeiros. Não existem dois iguais. Na próxima
irei mais atento e procurarei fotografá-los a todos. São lindíssimos na
sua maioria e ainda bem que nem todas as urbanizações os derrubaram a
todos. Alguns surgem muito juntos e alguma razão deve haver para isso. Uma
paisagem com cruzeiros é digna de ser atravessada a pé. Eu hei-de voltar a
essa via sacra da minha salvação. Reparei também nos nichos. O que mais me
surpreendeu foi a quantidade deles que foi abandonada, desprezada,
estragada. Alguns são grandes e outros são belos. Também os há pequenos.
Mas na grande maioria faltam-lhes o santo ou a santa, o Cristo ou a
Senhora. Grande parte deles estão sem escultura, sem pintura ou azulejo.
Não creio que tenham sido todos roubados. Mas essa falha na paisagem do
caminho rasgou-me a alma.
10. Comemos ao ar livre, num parque
sossegado. Teria preferido comer em cima da ponte que atravessa o rio Âncora,
mas parte do grupo tinha-se adiantado e só já foi caçado na estrada
nacional. Carregar a comida às costas tem o seu valor! Carregar comida
para que os outros comam tem ainda mais valor. Eu senti-me na obrigação de
comer mais que o devido: as mochilas iriam mais leves para os últimos 15 km! É certo que repor
as forças é do mais necessário que há, mas aquele sol, aquela sombra, aquela
calma, aquele dia quente, a erva fresca, tudo, tudo nos convidava a comer
em família um almoço de pão e água!
11. Há pormenores que só vê quem
vai desperto e não por desporto. É como certos sons: para lá de certo
limiar não há quem os oiça! Para (re)ver tais pormenores só obrigando-nos
a regressar ao caminho, mas o mais certo é que se regressarmos o caminho
já seja outro e nós sendo os mesmos seremos muito diferentes. Não sei se
daremos por tudo, se ouviremos tudo o que desta vez não foi sentido. Não
sei. Mas pormenores há que são verdadeiramente por maiores. Eis mais uma
razão para um dia eu voltar ao caminho.
12. Mas sei por ciência certa que
é um encanto ir por perto da Esmeralda e ouvi-la rezar. É uma questão de
sensibilidade. Acredito que nem todos os que vão pelo caminho consigam
rezar, que não estejam afeitos ou para aí virados. Mas indo por perto dos
passos da Esmeralda conseguimos ouvir o coração dela cantar ao ribeiro que
descai pelas fráguas, a agradecer a força da graça e a fonte do Baptismo!
Sim, ela fá-lo bem, e não com estas palavras toscas, mas com jeito de
mulher, de mãe, esposa e avó! Hão-de experimentar caminhar ao lado dela. E
se no meio das silvas ou dos tojos aparecer em cima duma pedra alguma florzinha
tenrinha, ela há-de aproximar as mãos de artista e tocando-a lembrar-se-á
do salmo da vida que é tão difícil e que sai vencedora, por entre tantas
surpresas e dificuldades ariscas que toda a história tem. Experimentem
escutá-la da próxima vez… experimentem rezar o salmo da natureza, com a
natureza: verão, é um encanto! Render-se-ão.
13. Creio que os albergues têm
algo de lúdico. Isso pensei eu também ao longo do meu trajecto. A
brincadeira, a simplicidade, o jogo também fazem parte da vida e do
descanso. Não sei por que artes, lembrei-me que seria interessante por o
nosso São João da Cruz e jogar uma bisca lambida com o nosso São Tiago. A
ideia não agradou a quem a comuniquei. Mas, reparem, nem eu acredito que
eles só rezaram em vida. Também riram e brincaram, caminharam e
descansaram, encantaram-se com a natureza e pararam para descansar. Teresa,
a amiga de João, dizia que um santo triste é um triste santo. Ali, no nosso
albergue, um dia eles hão-de aparecer para uma biscalhada. Juntos hão-de
ler salmos e rezas, e porque não, hão-de também dedicar-se a uma jogatina
enquanto o sono não vier!
14. O albergue de Caminha é grande
e com um hospitaleiro disponível, generoso e simpático. É bem maior que o
nosso, com várias salas. Tem ali à beira o Rio Minho e um jardim fresco.
Valeu a visita àquele albergue tão acolhedor. Pode receber imensos
peregrinos e pela certa oferece-lhes uma boa possibilidade de descanso.
Todo o mérito e louvor a quem o ergueu!
15. Depois de um descanso de uma
hora e de um refresco enfiamo-nos no comboio e regressámos à civilização.
É duro regressar à civilização, e mais ainda quando o regresso dura
qualquer coisa como quinze minutos! Caminhámos trinta e sete distendidos
quilómetros durante nove horas! Foram nove horas a fugir do stress! Nove
horas esquecidas em quinze minutos que nos devolveram à realidade e nos
mergulharam no pressão que nos mói e nos traga! Arre, que o que mais
custou foi mesmo o regresso!
16. Tinha chegado a hora de curar
as bolhas e de renovar os cuidados às demais feridas que a alma dia a dia
nos reclama. Amén. O dia seguinte era domingo. Separámo-nos com beijinhos
e com promessa de voltarmos ao caminho. Eu voltarei se Deus quiser e nem é
preciso que seja uma etapa diferente.
[Frei João Costa]