quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Ecos da I caminhada de Albergue em Albergue (III)


Um caminho, dois albergues, muitos amigos

Um albergue é uma responsabilidade. Digo, ter a chave que abre por dentro o albergue de peregrinos é uma grande responsabilidade. Ainda assim atirei-me à ideia e eis que o Albergue de peregrinos de São João da Cruz dos Caminhos, aqui, em Viana do Castelo, está de pé e de pé se mantém servindo delicadamente os peregrinos que aqui chegam buscando repouso, silêncio, descanso.
Nem todos o encontram, mas faremos tudo para que sim.
 
 
Abriu a 14 de Dezembro de 2010, dia do Patrono. Abriu como as sementes pequeninas que se semeiam na terra. E, de facto, foi assim que entreguei a chave aos primeiros hospitaleiros. A chave estava semeada, o albergue podia abrir.
Depois de aberto foi um gozo receber peregrinos. E um gozo maior ainda foi ver que foram aparecendo hospitaleiros, na verdade, hospitaleiras, que tendo feito o caminho de Santiago agora dão tempo para abrir os braços e o coração aos que chegam cansados. (É outra maneira de fazer o caminho. É um caminho interior de serviço).
O nosso albergue não é perfeito, mas é o orgulho das hospitaleiras, meu e do Santo.
Entretanto – enquanto se lavam janelas ou se espera por um peregrino – fomos perguntando-nos: «E porque não vamos para o caminho, de albergue em albergue, ver e sentir o percursos que os peregrinos hão-de fazer? Assim até os poderemos ajudar melhor, informar melhor…». Assim foi, escolheu-se o dia, botou-se para o facebook e ficámos à espera de um dia bom.
O dia chegou de encomenda: que belo dia! Chovera durante quase toda a semana e voltou a chover impiedosamente nos dias seguintes. Foi no dia 20 de Outubro, sábado. Um dia quente, luminoso, cheio de sol, de natureza, de cores outonais, setas amarelas, cheiros frescos, flores frescas, que também as há no Outono!, castanhas no chão, calçadas.
Às oito e meia em ponto daquela manhã fria começámos a caminhada. No albergue quase ninguém entrou porque não queríamos entrar, queríamos caminhar! Cada um levava o pin do albergue bem à vista. Éramos 16 caminheiros, dois homens e 14 mulheres! E está tudo dito.
Junto à Igreja do Carmo derivamos em direcção ao rio, buscando a primeira seta amarela: foi uma festa. Depois percorremos a cidade fria e deserta. Que me recorde passamos pela Sé, pela rua e pela capela de São Tiago. Subimos ao Bairro das Ursulinas e tchás, tiramos a primeira foto em conjunto. Continuamos a subir, apanhámos a cota certa e aí vamos nós até Carreço. Duvidei que lá chegássemos, mas chegámos e até chegámos mais longe. Como vamos ver. Aqui ficam as minhas impressões.
 
 
1. Cada vez me convenço mais: se queremos alguma coisa com alma, um projecto que chegue ao destino deve entregar-se a uma mulher. Se ela não for capaz arranjará quem seja. Na caminhada nós tínhamos 14, cinco comprometidas com a hospitalidade do albergue. Sobre a hospitalidade estamos bem falados, sobre a coesão do grupo, sobre o levar a coisa até ao fim está visto: chegámos e a cantar!
 
2. As hospitaleiras prometeram-nos um máximo de 25km de caminho. Mas ao que parece percorremos 37 quilómetros! GPS dixit! Não sei como, mas chegámos todos. Ao fim de 25 km regressaram a casa quatro caminheiras, mas tinham que fazer noite, e a troika não está para brincadeiras! E já muito bondosas foram elas em nos acompanhar durante tanto tempo! Aqui há gente de coragem.
 
 
3. As setas amarelas são um vício. Segui-las, buscá-las é um jogo. Nem sempre vão pelo mais óbvio. Não nos levam pelas vias mais rápidas onde se poderiam cumprir os simples 25km, não. As setas amarelas levam-nos ao encontro do musgo, das pedras velhas, dos cruzeiros, igrejas e monumentos, ao encontro das calçadas antigas, dos ribeiros cantantes, dos velhos caminhos de carros de bois, do silêncio do vento por entre pinhais. Depois levam-nos ao centro dos pequenos burgos, sem outra pretensão maior que a de ir beber um bica, se for o caso. Enfim, que as setas amarelas são um vício vê-se bem pela cara com que se fica quando por alguma razão deixamos de as ver.
 
 
4. Caminhar devagar, saborear o tempo, sentir o relógio é uma boa onda. Ninguém corre, ninguém força a corrida. Há tempo para tudo, sobretudo para perder. É uma bela ideia perder tempo no caminho. Sinceramente, gostei muito de ter perdido aquele dia. Há medida que o tempo corria eu corria para longe do écran do computador e irmanava-me com os montes e as ribeiras, os pássaros e os campos, o verde e os tons castanhos e vermelhos. Que bela fusão! Que bela ousadia a de perder tempo ao menos por um dia!
 
5. Alguém me alertou ao início que «o caminho é um confessionário!». Levei a coisa para o sério, a sério. Embora tenha pensado que era por eu ser padre. Não era. Concluí que andamos todos tão isolados que é bom ter quem nos ouça em pequenas e grandes (nas grandes também!) confidências. Concordo: o caminho é um bom confessionário. Não tenho dúvidas. É bom que haja alguém que nos ouça ao longo do caminho. Também por isso gostei de caminhada de albergue em albergue.
 
6. É boa ideia levar uma pequena máquina fotográfica. Agora há telemóveis que fazem a tarefa, mas eu aconselho a levar uma com alguma qualidade. Não dá para fotografar tudo, pois existem imensos motivos, imensas surpresas, desde as gentes à natureza, dos animais e aos edifícios. De Viana a Caminha existem coisas interessantíssimas para ver e fotografar. Quem gosta de guardar ou construir um álbum faz bem em atirar os pés ao caminho por ali. Não desvendo segredos, digo só que fazem bem em ir e fotografar.
 
 
 
7. O caminho que passa por Viana tem um nome: chama-se Caminho da Costa. Claro que nos atira para o monte, mas trepámos pouco, subimos pouco. Tirando as Ursulinas só depois em Afife é que os montes nos tiram os bofes cá para fora. Mas é pouco, quase nada. De resto, enquanto torneamos a montanha, enquanto delicadamente vamos percorrendo os segredos do seu corpo, o mar mantém-se presente. O mar verde e azul mantém-se ali vivo, forte, calmo, cheiroso. Caminhamos pelo monte e o mar caminha connosco. Vem beijar a terra e fica longe de nós, mas vai e vem como que ousando seguir-nos, acompanhar-nos, escutar-nos. Há nele uma energia que nos chega e chegando impede-nos de desistirmos. Há ali um não sei quê com o mar, que nos atira para frente…
 
8. Fiquei sensibilizado com o pormenor de trilharmos a rota dos monumentos locais. É uma marca distintiva do caminho de Santiago. Vamos para lá, mas não vamos só para comungar a natureza, o sol e a penedia. Vamos comungar também os monumentos, as igrejas, a arquitectura. Tudo espanta o peregrino de Santiago, e isto também. Gostei desse pormenor mesmo quando ele me fez caminhar mais quilómetros e contribuiu para o aumento das minhas bolhas. Se é verdade que nem só de pão vive o homem, então demos-lhe caminhos para percorrer, sol para beber, ribeiro com quem possa cantar, céu onde possa voar, monumentos que possa apreciar, escadas onde descansar.
 
 
 
9. Duas coisas neste particular me surpreenderam: os cruzeiros e os nichos. Eu sabia que os cruzeiros do Minho são famosos e sempre que posso páro neles e até rezo. E admiro-os. São testemunho da fé cristã. São sobretudo um testemunho público duma fé comunitária. Eu gosto dos cruzeiros. Não existem dois iguais. Na próxima irei mais atento e procurarei fotografá-los a todos. São lindíssimos na sua maioria e ainda bem que nem todas as urbanizações os derrubaram a todos. Alguns surgem muito juntos e alguma razão deve haver para isso. Uma paisagem com cruzeiros é digna de ser atravessada a pé. Eu hei-de voltar a essa via sacra da minha salvação. Reparei também nos nichos. O que mais me surpreendeu foi a quantidade deles que foi abandonada, desprezada, estragada. Alguns são grandes e outros são belos. Também os há pequenos. Mas na grande maioria faltam-lhes o santo ou a santa, o Cristo ou a Senhora. Grande parte deles estão sem escultura, sem pintura ou azulejo. Não creio que tenham sido todos roubados. Mas essa falha na paisagem do caminho rasgou-me a alma.
 
 
10. Comemos ao ar livre, num parque sossegado. Teria preferido comer em cima da ponte que atravessa o rio Âncora, mas parte do grupo tinha-se adiantado e só já foi caçado na estrada nacional. Carregar a comida às costas tem o seu valor! Carregar comida para que os outros comam tem ainda mais valor. Eu senti-me na obrigação de comer mais que o devido: as mochilas iriam mais leves para os últimos 15 km! É certo que repor as forças é do mais necessário que há, mas aquele sol, aquela sombra, aquela calma, aquele dia quente, a erva fresca, tudo, tudo nos convidava a comer em família um almoço de pão e água!
 
 
 
11. Há pormenores que só vê quem vai desperto e não por desporto. É como certos sons: para lá de certo limiar não há quem os oiça! Para (re)ver tais pormenores só obrigando-nos a regressar ao caminho, mas o mais certo é que se regressarmos o caminho já seja outro e nós sendo os mesmos seremos muito diferentes. Não sei se daremos por tudo, se ouviremos tudo o que desta vez não foi sentido. Não sei. Mas pormenores há que são verdadeiramente por maiores. Eis mais uma razão para um dia eu voltar ao caminho.
 
12. Mas sei por ciência certa que é um encanto ir por perto da Esmeralda e ouvi-la rezar. É uma questão de sensibilidade. Acredito que nem todos os que vão pelo caminho consigam rezar, que não estejam afeitos ou para aí virados. Mas indo por perto dos passos da Esmeralda conseguimos ouvir o coração dela cantar ao ribeiro que descai pelas fráguas, a agradecer a força da graça e a fonte do Baptismo! Sim, ela fá-lo bem, e não com estas palavras toscas, mas com jeito de mulher, de mãe, esposa e avó! Hão-de experimentar caminhar ao lado dela. E se no meio das silvas ou dos tojos aparecer em cima duma pedra alguma florzinha tenrinha, ela há-de aproximar as mãos de artista e tocando-a lembrar-se-á do salmo da vida que é tão difícil e que sai vencedora, por entre tantas surpresas e dificuldades ariscas que toda a história tem. Experimentem escutá-la da próxima vez… experimentem rezar o salmo da natureza, com a natureza: verão, é um encanto! Render-se-ão.
 
13. Creio que os albergues têm algo de lúdico. Isso pensei eu também ao longo do meu trajecto. A brincadeira, a simplicidade, o jogo também fazem parte da vida e do descanso. Não sei por que artes, lembrei-me que seria interessante por o nosso São João da Cruz e jogar uma bisca lambida com o nosso São Tiago. A ideia não agradou a quem a comuniquei. Mas, reparem, nem eu acredito que eles só rezaram em vida. Também riram e brincaram, caminharam e descansaram, encantaram-se com a natureza e pararam para descansar. Teresa, a amiga de João, dizia que um santo triste é um triste santo. Ali, no nosso albergue, um dia eles hão-de aparecer para uma biscalhada. Juntos hão-de ler salmos e rezas, e porque não, hão-de também dedicar-se a uma jogatina enquanto o sono não vier!
 
 
 
14. O albergue de Caminha é grande e com um hospitaleiro disponível, generoso e simpático. É bem maior que o nosso, com várias salas. Tem ali à beira o Rio Minho e um jardim fresco. Valeu a visita àquele albergue tão acolhedor. Pode receber imensos peregrinos e pela certa oferece-lhes uma boa possibilidade de descanso. Todo o mérito e louvor a quem o ergueu!
 
15. Depois de um descanso de uma hora e de um refresco enfiamo-nos no comboio e regressámos à civilização. É duro regressar à civilização, e mais ainda quando o regresso dura qualquer coisa como quinze minutos! Caminhámos trinta e sete distendidos quilómetros durante nove horas! Foram nove horas a fugir do stress! Nove horas esquecidas em quinze minutos que nos devolveram à realidade e nos mergulharam no pressão que nos mói e nos traga! Arre, que o que mais custou foi mesmo o regresso!
 
 
16. Tinha chegado a hora de curar as bolhas e de renovar os cuidados às demais feridas que a alma dia a dia nos reclama. Amén. O dia seguinte era domingo. Separámo-nos com beijinhos e com promessa de voltarmos ao caminho. Eu voltarei se Deus quiser e nem é preciso que seja uma etapa diferente.
 
[Frei João Costa]

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